EU NÃO SABERIA MESMO EXPLICAR ...

 

 

 

Meu pai era uma pessoa boa. Muito honesto, exigente, amistoso e austero ao mesmo tempo. Muito rigoroso em seus princípios e, em nome destes rigorosos princípios, nos castigava muito. Mas era um bom amigo quando estava calmo, quando obedecido, mas raríssimo era o dia em que não batia em um de nós e, quase sempre, em muitos de nós. Amava o futebol e a política. Seu Botafogo e seu PSD os defendia veementemente. Sabia tudo de futebol. E, como homem de bons princípios que era, sempre foi muito admirado pela sociedade. Viveu pela família e para a família a quem defendeu e tentou dar os melhores princípios de credibilidade e honestidade.  

Ele gostava muito de caminhar pelas poeirentas estradas do lugar. Eu gostava de acompanhá-lo e, em meio a tanta poeira, conversávamos muito. Ele ensinou-me muito sobre a vida, sobre as bondades e as maldades do ser humano.  

Eu amava aquele homem... Tínhamos o mesmo nome e ele me ensinou a chamá-lo de xará. Era meu herói. Eu tinha vontade de abraçar aquela criatura divina, apertá-lo em meus braços e enchê-lo de beijos molhados, mas sua rude criação não nos permitia tamanha intimidade. O único beijo que eu dei em meu pai ele estava morto no caixão para ser lacrado e enterrado.  

Mas por que estou contando isso? Porque ele sempre me alertava a nunca contar nenhuma história que pudesse ser desacreditada. E até dava um exemplo: se, porventura, você encontrar um extraterrestre, não conte para ninguém, pois as pessoas desacreditarão e poderão ridicularizar você. E pior, você não terá chance de provar a verdade!  

Dizia ele, cale-se se você se deparar com um ser de outro planeta.  

E eu o sabia sábio e sempre obedecia à sua sábia sabedoria. Sempre e sempre... Mas existem histórias que não podem ser omitidas. Nos chegam como gigantescos mistérios e os mistérios, quando muito grandes, não podem ser desobedecidos. Que riam deles os incrédulos e ou se alegre novamente meu coração com esta lembrança mágica.  

Estava eu em minha sala no ambulatório de hemodiálise da Clínica Nefrológica de Santos, anexa ao complexo hospitalar da Sociedade Portuguesa de Beneficência de Santos, SP. Era um momento de raríssima tranquilidade em meu ambulatório. A porta estava entreaberta. Uma senhorinha magra, raça negra, bateu fragilmente na porta e pediu para falar comigo. Imediatamente, como faço com todos que me procuram, eu me levantei, a peguei pela mão e a fiz sentar-se. Contou-me ela a história de uma paciente que estava há dias em uma maca do PS Central de Santos aguardando uma vaga para hemodiálise e esta vaga nunca aparecia. Implorou-me ajuda.  

Imediatamente eu liguei para os setores competentes e ela tinha razão. Porém, era um caso perdido. Tratava-se de uma senhora portadora de hipertensão maligna, falência miocárdica e insuficiência renal terminal e, para completar, era portadora de neoplasia ginecológica invasiva e com múltiplas metástases. Segundo o colega que me passou o caso sua pressão arterial não respondia a nada, estava completamente edemaciada e apresentava incontrolável sangramento vaginal. Antes de eu largar o telefone, me dirigi à senhorinha para dizer que era um caso perdido e quando cruzei seu olhar, uma mensagem de luz me transformou em um idealista irresponsável e, voltando ao telefone eu pedi ao colega que me mandasse a paciente e assim ele o fez. 

Quando me chamaram para fazer a internação da paciente eu não sabia por onde começar. Revi todos os exames e os repeti para comprovar a veracidade daquela pobre coitada. Severa hemorragia cerebral, intraparenquimatosa, severa acidose metabólica incompatível com a vida às custas de elevados níveis de ureia e creatinina, toda inchada que mal cabia no leito. Estava em coma.  

Repeti a mesma medicação já que não respondia a nada. Exalava um mal cheiro que ninguém conseguia ficar no quarto. Apenas a velha senhorinha sentada estava e sentada ficou ao seu lado. Seria questão de horas e o óbito ocorreria. Fui frustrado para casa. No dia seguinte, como sempre faço, solicitei avaliação de todas as especialidades envolvidas e todas foram categóricas em condenar aquela “infeliz” moribunda. 

Quisesse, eu não teria o que fazer. Orientei apenas um conforto final e um cuidado respeitoso com a necessária dignidade de uma morte inevitável, de uma morte iminente.  

Cabisbaixa, sem palavra proferir, sentada continuava a negra senhorinha ao lado da moribunda. 

Voltei para casa. O pedaço mais gostoso de meu dia sempre foi voltar para casa. Madrugada alta, me ligaram do hospital pedindo autorização para suspender a medicação anti-hipertensiva da paciente, pois ela havia voltado a urinar e a pressão arterial se normalizara. Assim que amanheceu o dia, eu fui para o hospital. Entrei no quarto e não reconheci a paciente. Até achei que fosse outra pessoa. Perguntei e a enfermeira confirmou que era a mesma.  

Completamente desinchada, lúcida, orientada, sem sinais de sangramento vaginal, sem hipertensão, conversando normalmente e deambulando pelo hospital. Assintomática e sem se lembrar de absolutamente nada de horas atrás. Perguntei pela velha senhorinha e todos se admiraram com minha pergunta, pois segundo os funcionários e mesmo a paciente nem cadeira havia ao lado do leito muito menos nenhuma senhorinha. Insisti e ninguém vira nenhuma senhorinha ali em nenhum dia. 

Eu mantive a paciente internada por alguns dias e refiz toda a investigação anterior e todos os exames foram normais. 

Outros especialistas estavam envolvidos, e simplesmente desconheceram a incoerência dos fatos. “Que bom que melhorou.” Respondiam, indiferentes. 

Dei alta para a paciente e a acompanhei por alguns meses, sempre repetindo os mesmos exames. Um dia dei alta definitiva e nunca mais a vi. 

Há muito eu sentia necessidade de contar esta história, mas evitava, preocupado com o descrente irresponsável. Com medo que alguém me perguntasse pela magra senhorinha negra... Eu não saberia explicar.