... E DEUS DEU-ME A HONRA E A GLORIA DE SER MÉDICO
20-TODO MUNDO PODE SER PAPAI NOEL
Era tarde naquela noite. Eu chegara cansado de um dia estafante.
Deixei o carro na garagem e caminhei para o elevador.
No saguão do prédio, alguns moradores faziam a decoração do Natal que já se aproximava. Inúmeras crianças do prédio faziam uma festa em torno dos enfeites que, pouco a pouco tomavam a forma da maior festa cristã.
Neste instante, já no elevador, o telefone tocou. Uma voz angustiada me chamava para ir atender o seu marido. Parecia nervosa. Eu reconheci aquela voz. Estava chorosa e angustiada. Eram meus pacientes antigos. Eu não os via há vários anos. Eram muito ricos e, sempre me pagavam muito mais do que eu merecia. Ela estava misteriosamente assustada e, quando o mistério é muito grande, “a gente não ousa desobedecer”.
Eu estava muito cansado. Eu merecia um bom banho, mas voltei, peguei o carro e segui em direção ao endereço por ela fornecido. Achei estranho, pois, eles moravam em um bairro rico da última vez que fui chamado há vários anos.
Enquanto dirigia em direção ao endereço fornecido, ouvindo uma boa e romântica música no rádio do carro, veio à minha mente a história deste casal. As histórias são sempre as mesmas: mudam os personagens, mas o enredo sempre se repete, em épocas diferentes, em regiões diferentes, com impactos e interesses diferentes.
Não posso revelar nomes de pacientes. Vou apelidá-los de “João e Maria”. Contaram-me eles, certa vez como clientes particulares que eram, que desde crianças, sendo eles, primos, viviam, brincavam, estudavam juntos, juntos cresceram, juntos sonharam e, não deveria, mas, o destino não o quis diferente ... se apaixonaram. E, não foi uma paixão qualquer. Não, não foi...
Ainda menores, esta paixão foi percebida por seus pais e demais familiares e severamente proibida. Foram afastados, punidos e castigados sem chance de explicação. Viveram, segundo eles, uma romântica e novelesca paixão por vários anos... Paixão esta, escondida, perseguida e repreendida. Mas, quando uma paixão é honestamente correspondida, nada consegue sufocá-la e, até o universo conspira a seu favor, conspira para seu fortalecimento e, sua concretização.
Segundo me contou, ele, viciado que era em loteria, ganhara em um concurso, uma enorme quantia e, ficara rico, muito rico. Cheios de sincera honestidade, tentaram mendigar junto aos seus familiares um apoio para sua relação, sem sucesso. Quiseram e foram proibidos de se casarem. O amor à família era muito grande, mas, o amor entre eles os cegava e os impelia a não admitir a sua fragmentação por preceito sociofamiliar.
“João e Maria” fugiram de seu estado, Rio Grande do Sul, e chegaram a Santos, São Paulo. Aqui, compraram um apartamento em um bom bairro e abriram um comércio: uma cervejaria e pizzaria muito bem localizada no coração da cidade. Ganharam muito dinheiro e, o medo da rejeição e repreensão, os levou a ficar longe de seus familiares que nunca imaginaram seu progresso financeiro e amoroso aqui na baixada santista.
Certa tarde, quando ele chegava à sua cervejaria, vários clientes saíam correndo gritando que era um assalto. “João” entrou apressadamente e viu sua amada “Maria” sob a mira de um revólver de um menor irresponsável. Impensadamente, entrou em defesa de sua amada e foi baleado no pescoço. Lembro-me, estava eu de plantão na UTI quando ele chegou trazido pelo resgate do corpo de bombeiros, corretamente abordado em seu primeiro atendimento. Colar cervical, ventilação mecânica com entubação nasotraqueal. Desperto. Tetraplegia espástica. Tirei o respirador e verifiquei que respirava com dificuldade, mas espontaneamente. Lesão medular provavelmente a nível de C5. Um pouco acima e morreria por incapacidade respiratória aguda. Estava condenado a uma vida vegetativa. Jamais sairia da cama.
Recebeu alta hospitalar. Várias vezes eu fui atendê-lo em seu apartamento de luxo. Como era de se esperar, e sua esposa muito bem orientada sabia, era um corpo inerte. Lúcido, orientado, mas sem nenhum movimento do pescoço para baixo. Sonda vesical continua, pois apresentava atonia de bexiga. Evacuação intestinal no leito. A alimentação também teria que ser assistida.
Anos se passaram e nunca mais os vi. Agora estava eu indo novamente ao seu encontro.
Cheguei.
Cheguei a um mal iluminado bairro, de ruas descalças com estranhos moradores, de olhares mais estranhos ainda. Um irritante e barulhento ladrar de mal-cheirosos cães orquestrava a minha chegada. Não demorei a encontrar a rua indicada e parei no número correspondente. Chovia muito. Escorregava bastante o chão de terra batida. Fui recebido por um pestilento cachorro desnutrido com costelas à mostra sob um couro despelado e sujo. Bati na porta e me anunciei... Após alguns segundos, uma voz conhecida me ordenou que entrasse. Empurrei a porta. Era um ambiente pobre, muito pobre. Parecia um cômodo só. Recebi em meus olhos os olhares de “Maria” e de “João” como um brilho de gratidão por eu ter atendido ao chamado. Suas faces brilhavam e irradiavam uma expressão de alívio inexplicável. Eu me senti um discípulo do próprio Cristo trazendo o pão da cura. Era uma visão triste. Antes, um lindo casal rico e cheio de vida. Agora ali naquele estado deplorável. Sentada ao lado do leito dele, ela, emagrecida desnutrida e despenteada, nada disse inicialmente. Debruçou o rosto sobre seu corpo e chorou muito. Observei em silêncio. Às vezes a melhor fala é o silêncio.
Do lado da cama, um caixote servia de mesa e, sobre o caixote uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida e um copo descartável com um pouco de água e uma rosa vermelha. Representavam a fé e a vida.
Depois de refeita da emoção inicial, enquanto eu o examinava ela me contou rapidamente tudo que acontecera naqueles anos. Ela tentou todo recurso para tentar salvá-lo.
Gastaram tudo que tinham com hospitais e médicos que prometiam milagres e medicamentos irresponsavelmente ineficazes. Agora viviam miseravelmente, mas, ela não o abandonou. E nem eram casados. E nem haviam jurado diante do altar “fidelidade eterna”. E, ela não o abandonou. Mais uma vez, foi provado que indissolúvel é o amor, não o casamento.
Tinha febre. Grande úlcera de pressão em região sacra. Também os calcâneos apresentavam escaras de decúbito. Tanto as lesões dos calcanhares como a sacra apresentavam secreção purulenta e tecido necrótico a ser desbridado.
Levei-o para o hospital. Solicitei à cirurgia plástica uma extirpação dos tecidos necrosados daquelas feridas e à central de curativos um cuidado especial com aquelas lesões.
Programei deixá-lo internado por um longo tempo. Curativos diários, oxigenioterapia hiperbárica e fisioterapia. Com o auxílio de uma boa nutricionista, foi instituída uma hiperalimentação parenteral para garantir um bom aporte proteico sem o qual não se consegue cicatrizar as grandes úlceras de pressão. Antibioticoterapia, colchão caixa de ovo, mudança de decúbito de hora em hora melhoravam lentamente as escaras com o passar das semanas.
Não existe nenhuma pomada milagrosa que cure uma úlcera de pressão. O único remédio para essas “escaras de decúbito”, além dos cuidados acima, é não permanecer deitado em cima da ferida.
Consegui algumas coisas com esta ação. Dei a ele um conforto e cuidados dignos. Dei a ele, e a ela também, uma alimentação sadia e recuperei seu estado nutricional. Mas eles não poderiam morar no hospital e mais alguma coisa deveria ser feita. Insisti com eles para pedir ajuda a seus parentes e eles não aceitaram. Nasceram para sofrer aqueles dois? Teriam errado quando fugiram a contragosto de seus familiares? Estariam errados quando não procuraram seus familiares embrulhando em seu orgulho a dramática humilhação de seu fracasso?
Não tenho direito de julgá-los. Não tenho direito de responder estas questões. Tenho sim a obrigação de estreitá-los em meu abraço e sentir suas lágrimas secando em meu branquíssimo jaleco. Tenho sim a obrigação de fazê-los sentir a dignidade ainda viva em seus corações. Tenho sim a obrigação de fazê-los sentir que “a felicidade ainda existe” e porque ela existe não podemos desistir da vida, mesmo que difícil e empobrecida.
Mas entre posso e não posso, eu resolvi ser irresponsável desobediente dos direitos e sentimentos alheios e pedi à Assistente Social de nossa equipe multidisciplinar que tentasse localizar seus familiares no Rio Grande do Sul. Algu ns dias depois ela me entregou vários números de telefones de seus parentes. Como eu não podia imaginar a reação de seus parentes, eu liguei dizendo que eu sabia do paradeiro deles e que gostaria que viessem para conversarmos, mas eles foram muito radicais se negando a qualquer diálogo, mesmo depois que eu contei o acontecido. Não me conheciam, e em um país de aproveitadores e corruptos como é o Brasil, toda desconfiança tem que ser entendida e respeitada. Eu me identifiquei e dei várias formas de checarem minha vida e mesmo assim insistiam em negar qualquer aproximação. Fiquei sabendo que ela tinha dois irmãos médicos e resolvi ser radical. Ameacei denunciá-los por abandono de incapaz se não viessem pelo menos conversar. Depois das conversas eles poderiam tomar a decisão que melhor lhes conviesse. Marquei um horário no ambulatório do hospital. E vieram!
Quando chegaram, três dias depois, uma das secretárias veio me avisar que estavam à minha espera. Fui recebê-los. Dois casais de velhos, que seriam os pais dele e os pais dela. Dois irmãos dela que eram médicos. Estavam nervosos e irritadamente radicais. Alegavam que fizeram seus pais sofrerem muito e não mereciam compaixão. Contar novamente toda a história não foi possível, pois me interromperam com grosseria.
Mas eu tinha um trunfo. Era Natal. Ninguém resiste ao “espírito de Natal”. Eu já havia deixado um CD do cantor e compositor Peninha tocando baixinho e apenas aumentei o som.
Vê se tira de uma vez toda mágoa do seu coração
Tá na hora de soltar a criança que existe em você
Pega o barco da alegria sem medo e navega
Deixa o teu amor fluir natural
Porque vale a pena, porque a vida é linda
Porque é natal
Você pode se quiser, dividir pra somar com alguém
Um sorriso, uma palavra de amor não machucam ninguém
Hoje pode ser um tempo melhor do que ontem
Basta cada um fazer seu papel e não tem desculpas
Todo mundo pode ser Papai Noel
Vem me dar de presente o teu perdão
Um abrigo, um abraço, atenção
Um brinquedo, uma luz, abre o coração
Um amigo de fé traz o céu pro chão
Vem se dar sem pensar em receber
Teu carinho no escuro é um clarão
Tem alguém precisando de você
Um feliz natal, vamos dar as mãos
Foi uma comoção total! Abraçaram-se, choraram, pediram perdão a Deus e quiseram ver o moribundo. Levaram-no de volta para sua terra para cuidar dele!
Algum tempo depois fiquei sabendo que montaram uma clínica para cuidar de deficientes como ele. “João” foi o primeiro paciente desta clínica de deficientes. “Maria” gerenciava e orientava as cuidadoras.
Algum tempo depois recebi de “Maria” um cartão apenas com os dizeres: Obrigada, Papai Noel.