Estava eu em meu consultório relembrando um episódio marcante.

          Uma hipertensão arterial de difícil controle? Vários esquemas terapêuticos sem sucesso? Não, não. Na verdade, ele nunca se tratou corretamente. Porque não sentia nada, achava que não necessitava tomar medicamento. Erro grave. Mesmo não causando nenhum sintoma, a pressão arterial mantida alta, sem tratamento, acarreta modificações nos capilares arteriais de órgãos alvos levando-os à insuficiência. 

          Normalmente, em uma hipertensão arterial sem tratamento, sem controle, com o passar dos anos, acontece uma hipertrofia da musculatura cardíaca devido à força que o coração tem que fazer para vencer a pressão capilar arterial periférica continuamente. Em seguida, uma distensão de câmeras ventriculares com consequente diminuição de sua função. Ao mesmo tempo, instala-se uma retinopatia hipertensiva com progressiva perda da visão. A insuficiência renal e necessidade de hemodiálise é consequência evolutiva iminente. Sem falar o risco de um acidente vascular cerebral. 

          No caso deste paciente em questão, os órgãos primeiramente afetados foram os rins. Ele fez uma insuficiência renal crônica. Ficou em hemodiálise durante quase quatro anos. Durante esse tempo, esperou por um transplante renal de cadáver mesmo tendo uma filha saudável e apta para ser sua doadora. Não queria sacrificar sua filha. Seus cinco filhos e a esposa fizeram exame de compatibilidade e só a filha mais velha poderia doar, pois era a única que era completamente saudável. Os demais filhos eram hipertensos, todos, e um deles era também diabético.  

          O tempo passava e a inconveniência deste “incômodo”, a hemodiálise, mais a insistência da família acabaram por convencê-lo a aceitar o rim de sua filha. E assim foi feito. Nova checagem pré-operatória e o transplante foi marcado. Tudo correu como se desejava. O transplante foi um sucesso e nosso amigo ficou livre de hemodiálise. 

          Alguns dias depois, sua esposa, sempre presente em seu tratamento, muito confiante em mim, compareceu em meu consultório para agradecer a minha dedicação, agradecer meu carinho e paciência nos momentos de não aceitação da patologia e consequentes rebeldias e desobediências até à mudança de comportamento, passando pelos vários anos de hemodiálise até o final feliz com o transplante renal. Repentinamente ela começou a chorar. Chorava inconsoladamente. Arrastei a cadeira para trás e a deixei chorar. Fiquei observando. Não a interrompi. Eu sou um bom ouvinte. Depois do choro, vieram alguns minutos em silêncio. Ela se desculpou dizendo que estava tomando o meu tempo e que a sala de espera estava cheia de pacientes me aguardando. Eu respondi que não. Aquele tempo pertencia a ela, que ficasse à vontade e não se preocupasse com a demora. 

          Entre soluços, ela continuou. Disse-me que há trinta e sete anos ela guardava um segredo terrível que só ela sabia e, a cada ano que passava, mais difícil ficava se livrar deste peso. E sem me dar chance de opinar ela foi logo contando o tal segredo que tanto a atormentava. Disse que quando se casou ela estava grávida de outro homem e seu marido nunca desconfiara de nada. A filha que lhe doara o rim na verdade não era filha dele. Ninguém sabia deste segredo. Durante anos esta mentira a atormentava e ela nunca teve coragem de contar com vergonha e com medo da reação dele, de suas famílias bem como da sociedade. 

            Cabisbaixa e entre soluços perguntou-me se devia contar a verdade a todos. Antes de responder eu meditei um pouco. Nunca fui um bom conselheiro. Sempre fui melhor ouvinte. Falei. Falei com voz firme, convincente e cheia de verdade:  

          — Sua mentira deu à sua filha a oportunidade de crescer feliz com um pai de verdade. Sua mentira salvou seu marido trinta e sete anos depois. Continue em silêncio. Você não tem direito de interromper a felicidade que sua mentira provocou. 

Ela abraçou-me carinhosamente e saiu em silêncio.